O professor do futuro e suas competências

Em termos de educação, o contraste entre Brasil e Europa não é tão grande. Apesar do nível de vida ser mais elevado, com desigualdades sociais menores, a Europa tem muitas escolas ineficazes. Isso acontece porque nenhum governo tem dinheiro suficiente que a educação merece. Com essas colocações, o sociólogo, pesquisador e professor Philippe Perrenoud, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, na Suíça, abriu sua palestra sobre a formação de professores, num seminário promovido pela Pueri Domus Escolas Associadas, em conjunto com a Artmed Editora, que reuniu cerca de 700 pessoas no Hotel Intercontinental, em São Paulo, nos dias 10 e 11 de agosto, e contou também com a participação de Monica Gather Thurler, educadora da mesma universidade suíça.

Autor de A pedagogia na escola das diferenças, pela Artmed, Perrenoud tem influenciado o pensamento educacional brasileiro e as reformas promovidas pelo MEC. No primeiro momento de sua palestra, abordou os objetivos da escola e a relação com a formação de professores. Depois, fundamentado em suas pesquisas, recomendou orientações básicas para uma formação inicial de professores.

“Somos incapazes de imaginar o que vai acontecer em 2050; talvez nosso planeta nem exista mais”, supôs o pesquisador para perguntar: “Qual seria a formação de professor possível em 2010?” Para responder a essa pergunta, fez outra: “Quais são as finalidades da escola?” Em seu esclarecimento, argumentou que não se pode formar professores sem fazer escolhas ideológicas de acordo com o modelo de sociedade e de um ser humano que defendemos. Ele entende que, diante dessas escolhas, vamos atribuir as mesmas finalidades à escola e, conseqüentemente, para o papel dos professores.

“Mesmo em uma sociedade de globalização, a educação não é unificada”, salientou, lembrando que a finalidade da educação, no Brasil, continua sendo um assunto apenas dos brasileiros. A grande questão, segundo Perrenoud, é se esse processo de escolha vai ser feito de forma democrática ou à serviço da reprodução das desigualdades. “Essa questão não foi resolvida em parte alguma, nem na Suíça nem no Brasil nem em qualquer país da América Latina”, garantiu.

Com relação às finalidades da educação, Perrenoud disse que não há motivos para sermos otimistas. “Não estamos nesse mundo de sonhos de Morin (referência a Edgar Morin); estamos num mundo duro, onde há conflitos, exploração e dominação”, alertou. Nesse contexto, podemos identificar uma tensão entre as finalidades ideais e as designadas à escola, que nem sempre são as mesmas. “Não podemos sonhar demais, mas pelo menos é possível ver se a escola está evoluindo no sentido dessas idéias mais generosas de Morin, observando que tipo de professor devemos formar para esse tipo de escola, porque esta é a única que me interessa”, ressaltou o professor. Os sete saberes necessários à educação do futuro, de Edgar Morin, lembrados na palestra, são basicamente: as cegueiras do conhecimento – o erro e a ilusão; os princípios de um conhecimento pertinente; ensinar a condição humana; ensinar a identidade terrena; enfrentar as incertezas; ensinar a compreensão e a ética do gênero humano.

Sobre a sua escolha ideológica, Perrenoud deixou claro que não lhe interessa professores que apenas servem para reproduzir as desigualdades. O que interessa para ele é formar professores para democratizar a cultura e criar indivíduos autônomos em sociedades democráticas. Para tanto, propôs algumas qualidades esperadas no educador do futuro, no âmbito da socialização e da cidadania. Ou seja, o professor deve ser uma pessoa confiável e coerente, com quem o aluno possa conversar e que tenha prazer em falar com os jovens. É preciso também ser um mediador entre as culturas e um estimulador de uma comunidade educativa. Além disso, espera-se que esse professor respeite regras mínimas, representando uma garantia da lei. É preciso, sem ignorar as outras qualidades, respeitar a palavra do outro e trabalhar para organizar uma vida democrática a partir da escola, onde aprendemos a tomar decisões conjuntas. Espera-se também que o profissional da educação seja capaz de transmitir a cultura sem ser entediante, fazendo as pessoas se sentirem como parte de uma comunidade que tem história. E por último, o educador deve ser um intelectual, ou seja, um indivíduo que tenha uma relação com o saber e com o debate. “Não deve ser um burocrata da cultura; tem que refletir e expor questões que podem mudar a vida; muitos já têm essas qualidades, mas deve isso à família, à profissão, à formação….”

Com relação à construção de saberes e competências, Perrenoud disse que o professor deve ser o organizador de uma pedagogia construtivista, para que os alunos tenham condições de construir seus próprios saberes. Deve também dar a garantia de sentido dos saberes, pois muitos alunos, segundo o sociólogo, não sabem porque estão aprendendo. Além disso, o professor deve ser um engenheiro de situações de aprendizagem; deve administrar uma heterogeneidade crescente de origens sociais, de níveis escolares diferentes; deve ser capaz de gerir percursos de formação individualizados. “Essas competências são raras hoje em dia”, lamentou, insistindo que devemos considerar o conjunto dessas dimensões para termos um programa de formação exigente.

E completou: “Não podemos ter apenas listas de competências; deve-se ter uma dimensão mais global, para os professores não serem apenas técnicos”. Ou seja, o importante seria uma dimensão reflexiva capaz de aprender constantemente com a experiência, construindo saberes durante os percursos profissionais individuais ou coletivos. Trata-se de dizer, em outras palavras, que o professor deve ter uma “autoformação permanente”. “Sempre que um aluno não aprende em sala de aula, temos matéria para refletir, para perguntar como fazer para atingir os objetivos da aprendizagem”, explicou, lembrando do papel de professor como intelectual na sociedade, “como alguém que deve participar do debate sobre educação, sobre o sentido da educação, não só para defender os interesses sindicais e corporativos, mas também para ajudar a sociedade, para saber de que cultura ela precisa e como ela quer reparti-la”. Atualmente, segundo Perrenoud, muitos professores estão ausentes do debate político sobre a educação: “Muitos não lêem jornal e acham a política um coisa chata.”

Na segunda parte de sua fala, Perrenoud apresentou uma concepção de formação de professores para se criar uma escola capaz de desenvolver uma autonomia dos saberes, a democracia e a capacidade dos alunos em construir e defender um ponto de vista pessoal numa ação coletiva em que a escola se insere. Para isso, considerou dez critérios de qualidade para a formação inicial dos professores. O primeiro diz que é importante haver uma transposição didática na formação, baseada na análise das práticas e de sua evolução na história. Em outras palavras, uma formação que permita observar a realidade das condições de trabalho dos professores, visando uma atividade real.

O segundo critério diz que é preciso um referencial de competências que identifique os saberes e as capacidades exigidas. “Se os alunos estão ausentes, se são mendigos ou ladrões, o professor deve ser capaz de lidar com eles; se os alunos não vêem sentido na Matemática, o professor deve ser capaz de justificar e ligar esse conteúdo às práticas sociais, aos problemas da humanidade, a um uso filosófico e prático desse saber; se o programa exige ensinar gramática a alunos que n
ão sabem ler, o professor deve ensinar primeiro a ler”, orientou o sociólogo, fazendo um alerta: “Isso tudo significa correr riscos”.

Outro critério de qualidade na formação inicial dos professores é a necessidade de uma plano de formação organizado em torno das competências. Por que aprender História da Educação ou Filosofia? Segundo Perrenoud, o professor deve saber que não precisamos apenas de saberes práticos, “porque uma prática reflexiva passa por saberes de alto nível teórico, epistemológico e filosófico”. Além disso, a formação inicial dos educadores deve ser estruturada numa aprendizagem por meio de problemas, como num procedimento clínico de alguns cursos de medicina. Neste caso, os alunos deixam de ter muita teoria e conhecimentos básicos, num primeiro momento, para lidar diretamente com os pacientes e seus problemas. No primeiro dia da faculdade, os alunos teriam que lidar com problemas, que seriam mais complexos com o tempo. Isso muda, segundo Perrenoud, o status do conhecimento que se torna uma forma de resolver problemas. Ou seja, os alunos têm que pesquisar, estudar e receber ajuda dos professores. Com isso, voltam aos problemas com armas para resolvê-los. Dessa forma, com o problema em primeiro lugar, temos o motor da busca do conhecimento, muito distante da situação lamentada pelo pesquisador: “Os alunos não fazem perguntas e nós (professores) damos as respostas”. Para Perrenoud, essa inversão é uma revolução no currículo para a formação de professores.

COMO CITAR ESTE CONTEÚDO:
MENEZES, E. T; SANTOS, T. H. Verbete O professor do futuro e suas competências. Dicionário Interativo da Educação Brasileira - EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2001. Disponível em <https://educabrasil.com.br/o-professor-do-futuro-e-suas-competencias/>. Acesso em 26 dez. 2024.

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