Entre os anos de 80 e 90, foram implementadas novas políticas para a organização da escola, principalmente nas capitais, dentre as quais destacamos a “Escola Plural” em Belo Horizonte, a “Escola Cidadã” em Porto Alegre e a “Escola Candanga” no Distrito Federal. O debate que se abriu sobre tais propostas, entre os docentes, evidenciou a existência de diferentes diretrizes políticas e pedagógicas, muitas vezes contraditórias entre si. Mostrou também grandes lacunas na fundamentação de seus princípios políticos e filosóficos, o que tornava difícil identificar, dentre outros aspectos, o tipo de projeto social e político para o qual aquelas propostas pretendiam educar: Qual o papel da instituição escolar no processo de transformação da sociedade? Qual o lugar da cultura e das ideologias nessas mudanças? Quais as estratégias de lutas mais adequadas para o efetivo alcance dos seus objetivos?
São muitas dificuldades encontradas pelos professores da escola básica, no sentido de compreender as razões de tantas diferenças, dado o fato de que o debate sobre a organização da escola é recente na cultura acadêmica — começou praticamente durante os anos da Constituição, de 1980 a 1985 — e vinte anos ainda são muito pouco tempo para se criar uma “cultura” de debates sobre a organização da escola (antes disso tinha a ditadura, impedindo o debate e a circulação de idéias). Dentre essas dificuldades, é preciso considerar também o nível dos cursos de formação de professores no País, que dissociam teoria e prática e, portanto, dissociam a discussão dos métodos didáticos (matemática, física, química etc.) do contexto no qual eles são ensinados e dos fins aos quais se propõem. Com todas as dificuldades próprias à realidade da docência no ensino básico, que pistas poderíamos ter, como professores, para alcançar uma maior clareza de questões de fundo (políticas, sociais, ideológicas) presentes numa política educacional? O livro da professora Rosemary Dore Soares, Gramsci, o Estado e a escola, apresenta-se como um importante contributo nessa direção, não somente para os docentes como também para pesquisadores e alunos, enfim, todos aqueles que tenham como área de atuação profissional e estudo a educação. Ela recolhe do pensamento de Antonio Gramsci subsídios teóricos e históricos para a análise da educação no Brasil, particularmente de seus fundamentos políticos e filosóficos.
A autora, que é docente e pesquisadora na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), junto ao Departamento de Ciências Aplicadas à Educação, inicia seu trabalho assinalando uma questão de não menos importância para o movimento popular e democrático brasileiro: que, desde os anos trinta, a esquerda não desenvolveu uma proposta escolar. Quando algo nessa linha começou a ser esboçado, em fins dos anos oitenta, algumas das propostas apresentadas tomaram o pensamento gramsciano como referência. Mesmo chegando a conclusões muito distintas entre si, a tendência dominante tinha um traço comum: criticava a escola existente e nela não identificava elementos contraditórios que permitissem subsidiar a luta para sua superação. Assim, uma escola pública e de boa qualidade só se apresentava possível com o fim da sociedade capitalista. A autora mostra que esse tipo de proposição se afasta das reflexões do pensador italiano. Com a “escola unitária”, Gramsci procurou dar corpo a uma estratégia voltada a oferecer a todos uma educação de boa qualidade, partindo da escola que está aí, resultante do confronto de forças sociais antagônicas, da luta entre projetos políticos distintos. Para explicar a articulação teórica que fundamenta a “escola unitária”, Soares desenvolve a trajetória lógica e histórica seguida por Gramsci ao analisar a relação entre sociedade política e sociedade civil.
Uma das contribuições teóricas mais importantes que a autora desenvolve nesse livro refere-se aos fundamentos metodológicos através dos quais Gramsci analisou a relação entre estrutura e superestrutura, resgatando a importância das ideologias no processo de transformação da sociedade. O percurso metodológico seguido pelo pensador sardo é reconstituído de modo original pela professora Rosemary, explicitando como ele afronta o velho problema filosófico da relação entre conceito e realidade, recuperando a metodologia dialética, através da releitura das obras de Marx.. É tal perspectiva que subsidia sua análise sobre o fenômeno estatal, debatendo seja com as tendências economicistas, seja com aquelas idealistas. Gramsci destaca que, para Marx, o conceito, sendo fruto do pensamento, não produz a realidade. No entanto, as idéias podem tornar-se realidade quando assumidas pelas massas. Pela mediação da prática social, afirma Marx, pensamento e ser se identificam no movimento histórico. É a idéia de história “in fieri”. Partindo desse princípio, Gramsci redimensiona a relação entre estrutura e superestrutura, mostrando que o vínculo dialético entre essas duas instâncias pode ser apreendido através do conceito de “bloco histórico”. Com base nesse conceito, resgata a validade histórica das “superestruturas”, das ideologias, na transformação da sociedade. Essa análise lhe possibilita um novo entendimento sobre o Estado, compreendendo-o como relação entre “sociedade política” e “sociedade civil”. É também essa análise que lhe permite distinguir que o trabalho de organização da cultura, tendo em vista a mudança da sociedade, é tão importante quanto o do sindicato e o do partido político. Daí a relevância que assume a escola, como um momento de organização da cultura.
É conhecida a complexidade da reflexão gramsciana, tendo em vista as adversas condições em que foi produzida no cárcere, tornando bastante difícil a sua compreensão aos iniciantes no assunto. E é em relação a essa complexidade que o livro torna muito mais fácil acompanhar a formulação do conceito de Gramsci sobre o Estado depois que a autora nos propicia condições de conhecermos suas referências metodológicas. Soares busca, nas indicações do próprio Gramsci, elementos para subsidiar a compreensão do processo histórico de ampliação do Estado, retomando alguns dos movimentos por ele seguido para examinar as reflexões de Hegel, Marx, Engels e Lenin. Desse modo, a autora tem presente na sua exposição os contextos históricos e políticos no qual esses autores formularam suas idéias, referência imprescindível para elucidar as relações entre “sociedade política” e “sociedade civil”, a partir do final do século XIX.
Alicerçada na concepção de “Estado ampliado”, desenvolvida por Gramsci, a autora analisa as “novas” formas de organização e luta dos trabalhadores, a partir do final do século XIX. Para tanto, ela reconstitui a trajetória histórica e política através da qual o pensador italiano apreende o fato de que ocorreu uma “reconversão tático-estratégica” na luta de classes no contexto do “Estado ampliado”. Seguindo indicações teóricas e políticas propostas por Gramsci, a autora sistematiza seus estudos sobre os processos históricos desenvolvidos na França, entre 1848 a 1871, e também da Revolução Russa de 1917 a 1921, nos quais o pensador italiano apreende a nova configuração de forças sociais e políticas resultante daquela mudança, qual seja, a superação da fórmula da “revolução permanente” pela fórmula da “hegemonia civil”. Trata-se do momento que o autor conceitua como “guerra de posição”, o qual requer uma ampla frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da “hegemonia” pelas classes subalternas. A fórmula revolucionária da “hegemonia civil” exige a participação ativa das maiorias sociais nos “aparelhos privados de hegemonia” (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem verdadeiras “trincheiras” de combate para obter posições de direção no governo da sociedade.
A abrangente pesquisa realizada pela professora Rosemary Dore alcança seu ponto alto no desenvolvimento da proposta da “escola unitária”, que é discutida de forma ímpar, quando consideramos outras abordagens existentes em nossa literatura educacional sobre o pensamento pedagógico de Gramsci. A “escola unitária”, poder-se-ia dizer junto à autora, é a principal estratégia proposta por Gramsci para a organização da cultura. O que permite diferenciá-la de várias outras propostas é o princípio de que seu ponto de partida é a escola que está aí, aquela produto do processo histórico do desenvolvimento da sociedade capitalista, a ser superada dialeticamente na “escola unitária”. Essa forma de conceber a construção de uma nova escola, que não se baseia num “deus ex machina”, proporciona-nos um estímulo “extra” para refletirmos sobre a organização escolar com a qual nos deparamos cotidianamente, desejando transformá-la numa escola pública de boa qualidade para “todos”. Ao refletir sobre essa organização da “sociedade civil”, a autora, inspirada em Gramsci, destaca a importância por ela adquirida no contexto histórico em que o “Estado” se amplia e a escola se torna, ao mesmo tempo, o centro difusor do conteúdo ético do “Estado” e o eixo de organização cultural da classe trabalhadora.
Quando sistematiza o processo de elaboração da proposta da “escola unitária”, a autora evidencia os motivos pelos quais Gramsci parte da “escola nova” (ou “escola ativa”), por ele considerada a proposta mais avançada de seu tempo. Ele compreendera, assinala a autora, que as diretrizes da “escola nova” foram elaboradas pela burguesia no contexto do “Estado ampliado”, no contexto da guerra de posição, no interior do qual a burguesia apreende a necessidade de “dar os anéis para não perder os dedos”. Trata-se de incorporar o novo, o “revolucionário”, para não se deixar morrer, garantindo, assim, sua direção política e cultural, isto é, sua “hegemonia”. A idéia da “escola unitária”, destaca a professora Rosemary, foi fruto da polêmica de Gramsci com as concepções educacionais de seu tempo. Isso porque o seu ponto de partida é a escola existente, que, na sua época, era um produto da reforma Gentile (“escola ativa”, a concepção neoidealista) atuando sobre a “escola humanista” que lhe precedia. Assim, a “escola ativa” era uma forma de modificar a escola existente. Ao formular a proposta da “escola unitária”, ressalta a autora, ele se apropria de elementos da “escola ativa”, mas também de elementos da “escola humanista” e também da idéia de unidade entre o pensar e o agir, ciência e técnica, que vinha sendo discutida no movimento operário.
A “escola ativa”, por sua vez, “incorporava” de forma “transformista” elementos da escola discutida no movimento operário. Assim, sublinha Soares, os elementos “racionais” da “escola ativa” eram, em “última instância”, algo vindo do questionamento que o movimento operário fazia da “escola humanista” e tinha sido “incorporado” pelos neoidealistas, como uma forma de “guerra de posição”, de absorção do “novo” para controlá-lo e neutralizar seu potencial revolucionário. É nessa perspectiva que o pensador italiano entende o que significam “elementos racionais” da “escola nova” ou “escola ativa”. Para Gramsci, segundo a abordagem da professora Rosemary, apropriar-se inteligentemente da “escola ativa” era dar uma direção ao movimento de organização da cultura, dentro do próprio movimento de reforma da “escola humanista”, guiado pelos neoidealistas da “escola ativa”.
Visando acompanhar a elaboração do conceito de “escola ativa” e a distinção entre o “trabalho” na perspectiva da “profissionalização” e na da “atividade”, Soares recupera diversas manifestações da “escola nova”, como a “escola do trabalho”, seja nos Estados Unidos ou na Alemanha, além do debate sobre a “escola única do trabalho” no movimento operário, de Marx a Lenin, até chegar às idéias de Gramsci. A abordagem da autora sobre esse debate nos fornece uma infinidade de elementos para entender as origens da “escola nova”, o conceito de “politecnia” e os argumentos sobre os quais o pensador italiano fundamenta ser a “escola nova” o ponto de partida para a formulação da proposta da “escola unitária”.
Para expor a concepção de “escola unitária” em toda a sua amplitude, a professora Rosemary desenvolve ainda dois outros conceitos focalizados por Gramsci, o de “organização da cultura” e o de “reforma intelectual e moral”, os quais considera fundamentais à compreensão da idéia de “escola unitária”. No contexto do “Estado ampliado”, ressalta a professora Rosemary, a cultura adquire um papel relevante no processo de transformação da sociedade e a escola é a principal instância dessa organização. Já o conceito de “reforma intelectual e moral” fundamenta-se naquela concepção da relação entre conceito e realidade, abordada no início desta resenha, segundo a qual não se pode construir o real sem a dimensão das idéias (filosofia) e da prática (história), ou seja, “intelectual” refere-se ao plano filosófico e “moral” ao plano prático, histórico, de construção do real (o fazer dos sujeitos). A história “in fieri” é essa síntese entre pensamento e real, no movimento histórico.
Por fim, destaco que o livro de Soares revela importante capacidade de pesquisa, interpretação e síntese. O resultado desse trabalho consiste numa original reconstituição lógica e histórica do pensamento de Antonio Gramsci sobre a concepção de “Estado ampliado” e a proposta da “escola unitária”, contribuindo para o estudo da educação e da escola hoje. Destaco ainda que esse resgate dos fundamentos lógicos e históricos do desenvolvimento da escola em nossa sociedade na perspectiva gramsciana, assim como a sua apresentação de forma sistematizada e elucidativa, como a que é desenvolvida pela autora, constitui-se num referencial teórico “orgânico”, consistente e atual, através do qual possibilita análises e críticas das propostas educacionais em debate no País, contribuindo para desvelar possíveis equívocos teóricos e políticos “camuflados” nessas propostas. Além disso, as diretrizes da proposta “escola unitária” apontam caminhos para a superação de problemas educacionais enfrentados pelos trabalhadores. Nesse sentido, considero a leitura dessa obra como uma necessidade para educadores, pesquisadores e alunos que investigam as bases do debate sobre a escola no Brasil.
* Especialista em Filosofia Contemporânea pelo Programa de Especialização de Professores de Ensino Superior (PREPES), da PUC-MG, mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE-UFMG) e professor da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, desde 1993.
Livro: Gramsci, o Estado e a escola Autor(es): Rosemary Dore Soares Editora: Unijuí Páginas: 488 |