Paulo Freire explica que quando estudamos o homem e seu processo de aprendizagem não podemos esquecer as relações com suas circunstâncias. Ele entende que a condição de existência do homem está no seu compromisso com essas circunstâncias, permitindo o aprofundamento de suas raízes. Nas palavras do educador pernambucano, “o homem não vive autenticamente enquanto não se acha integrado com a sua realidade”. É preciso viver criticamente integrado pois, caso contrário, o ser humano “vive vida inautêntica enquanto se sente estrangeiro na sua realidade”. Ou seja, com essa desintegração, vive-se alienado da cultura.
Essas idéias estão na introdução do primeiro livro de Freire, Educação e atualidade brasileira, publicado em 1959 como tese de Concurso para a Cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco. A obra foi editada pessoalmente pelo autor, em Recife, sem o apoio de uma editora para a divulgação. Em função disso, o trabalho pode ser considerado quase inédito para o grande público.
No entanto, o Instituto Paulo Freire, em conjunto com a Editora Cortez, preparou uma edição e acrescentou outros três textos de colaboradores. Esse acréscimo é justificado pelo instituto como necessário para “avançar mais na contextualização, tanto no sentido de recuperar a ambiência político-social do Brasil e, mais particularmente, do Nordeste, como no sentir a atmosfera familiar em que Paulo produziu o texto”. Além disso, o texto de Freire recebeu atenção de Lutgardes Freire, que buscou anotações, comentários e trechos sublinhados na bibliografia utilizada pelo pai e que, aliás, ele leu e consultou para escrever sua tese. O resultado desse levantamento pode ser conferido nas notas de rodapé.
O primeiro texto, do historiador José Eustáquio Romão, que também organizou a edição, reconstitui a época da denominada República Populista (1950-1964) no Brasil com o objetivo de contextualizar a gênese das principais idéias e concepções que influenciaram o pensamento de Paulo Freire. Romão defende a tese de que o educador trazia potencializados em Educação e atualidade brasileira os eixos e as categorias que iriam perpassar toda a sua obra.
O professor Paulo Rosas, que atuou ao lado do educador no Sesi (Serviço Social da Indústria) e hoje dirige uma instituição de estudos freirianos, escreveu o segundo texto. Na verdade, é uma apresentação feita no Seminário sobre o Recife, em maio de 1981, promovido pelo Cedec de São Paulo, com a presença de Paulo Freire, dentre outros pensadores, docentes e participantes. Seu depoimento nos ajuda a entender a cultura e a participação entre os anos de 1950 e 1964, período em que Freire escreveu Educação e atualidade brasileira. Para dar o tom daquele tempo, Rosas lembra de uma espécie de biblioteca mínima universal — com Gilberto Freyre, Jacques e Raissa Maritain, Gabriel Marcel, Ortega y Gasset, John Dewey, Karl Manneim, padre Joseph Lebret, Anísio Teixeira, Fernando Azevedo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Jean-Paul Sartre…
Uma das filhas de Freire, Cristina Heiniger Freire, que vive na Suíça, também colaborou com um texto. É um depoimento sobre sua convivência com a família até 1964. Ela conta que seu pai lhe dava tesoura e revistas velhas para recortar. “Passava, então, horas e horas recortando as tais revistas”, revela sua memória.
Outra tática de Freire era contar histórias, em que o personagem principal era a própria Cristina, “uma menina que chorava, esperneava, que batia no pai e na mãe”. “A alegria de ver-me existir, através do que ele contava, era enorme. Não tenho dúvida que estas artimanhas pedagógicas muito me ajudaram a superar a agressividade, deixando-me, ademais, o gosto de ouvir estórias que, por certo, conservo até hoje”, ressalta no seu depoimento.
Livro: Educação e atualidade brasileira |