“Por mais que a flexibilização seja afirmada em vários documentos oficiais, inclusive na LDB (Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), temos também, por outro lado, mecanismos de avaliação que estão controlando e definindo um determinado caminho para a prática curricular”. A opinião é da professora Alice Casemiro Lopes, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), durante o VIII EPEB (Encontro Perspectivas do Ensino de Biologia), realizado entre os dias 20 e 22 de fevereiro na Cidade Universitária, em São Paulo. Junto com a professora, compondo a mesa redonda “A presença da Biologia na reforma educacional e suas implicações para a construção da cidadania e do conhecimento”, participaram também o professor Nelio Bizzo, da Faculdade de Educação da USP, e a professora Graça Aparecida Cicillini, da Faculdade de Educação da Universidade de Uberlândia.
A professora Alice Casemiro Lopes está investigando os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) para o ensino médio. Seu objetivo é entender o processo de apropriação dos discursos curriculares pelos documentos da proposta oficial e mais especificamente a questão do currículo integrado. Ela entende que trazer a Biologia como disciplina escolar para uma discussão é falar de uma tecnologia de organização do tempo e do espaço, tanto dos professores quanto dos alunos. Além disso, essa forma de organizar a escola, por meio das disciplinas, não é exclusivamente epistemológica como se poderia imaginar. “É via disciplinarização que a gente controla o que cada um faz na escola, como faz, quanto faz, em que espaço faz”, explicou.
Ter um currículo oficial, segundo a professora, não significa que será utilizado nas escolas da mesma forma como foi apresentado. “É um balizamento, um orientador que apresenta diretrizes que podem ser modificadas na prática e no currículo das escolas”, salientou o caráter dos documentos oficiais. E mesmo sendo apenas sugestões, a professora disse que há um certo controle por parte do governo.
“Estamos vivendo um momento histórico simplificadamente denominado por políticas neoliberais. Por mais que a flexibilização seja afirmada em vários documentos oficiais, inclusive na LDB, temos também por outro lado mecanismos de avaliação que estão controlando e definindo um determinado caminho para a prática curricular”.
Outro aspecto levantado por Lopes foi sobre os financiamentos. Órgãos como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o Banco Mundial e até a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) exigem uma contrapartida dos governos quando oferecem financiamentos.
A professora afirmou ainda que muitas idéias são retiradas de determinados contextos (acadêmico, internacional ou das práticas em sala de aula) e depois são incorporadas aos discursos oficiais. “É por isso que nos identificamos em vários momentos dos textos oficiais”, frisou a professora, explicando que essa incorporação confere uma legitimidade maior aos documentos. Seu objetivo, no primeiro momento da palestra, foi desconstruir essa legitimidade.
Segundo os estudos da professora, os documentos de orientações gerais são muitos centrados na organização curricular e pouco centrado na discussão sobre a seleção de conteúdos. “É como se fosse dito que o conteúdo em si não precisa ser discutido; é como se nós pudéssemos trabalhar os conteúdos da mesma maneira que sempre trabalhamos; e o que precisa efetivamente mudar é o método, é a forma de organizar; e como esse conteúdo acaba sendo naturalizado, não é discutido ou questionado — é como se ele fosse obrigatoriamente neutro.”
Alice Casemiro Lopes garantiu ainda que temos uma ambivalência no documento oficial: centrado nas disciplinas e ao mesmo tempo nas disciplinas por competência. “As disciplinas acabam sendo submetidas ao currículo por competências; e esse é um dos problemas mais sérios dos PCNs”. Segundo a professora, o currículo por competência vem de uma tradição curricular que remonta os antigos objetivos comportamentais, que atendiam a uma demanda social no contexto de trabalho fordistas, de linha de montagem, dos processos de divisão de tarefas.
No entanto, atualmente, o currículo por competência já aponta para o modelo pós-fordista, que rompe com a linha de montagem, que busca a formação do trabalhador mais criativo, capaz de executar tarefas variadas e com um nível maior de abstração. “Porém, ainda que o modelo de trabalho tenha se modificado, o princípio curricular permanece o mesmo”, advertiu a professora, dizendo que essa lógica deve ser questionada, pois ela submete a educação ao processo produtivo. “Com isso a gente minimiza a idéia cultural mais ampla de educação e a limita ao processo de atendimento às demandas do mercado de trabalho”.
Mesmo sendo um currículo oficial, a professora da UFRJ lembrou que isso não significa acatar o que está sendo colocado. “Na medida em que não são obrigatórios, por serem parâmetros, temos que ter uma atuação em sala de aula, buscando re-significar e ir em direção, muitas vezes opostas, em relação àquilo que esta sendo proposto. “Porém, isso não pode ser feito de uma maneira ingênua, achando que os PCNs vão ser colocados numa gaveta e esquecidos”, alertou, dizendo que “os parâmetros estão num contexto muito mais amplo de reforma educacional”. Ou seja, atrelado aos parâmetros temos os exames e as avaliações governamentais. “Temos que trabalhar dentro dessa tensão: não superar toda e qualquer orientação dos parâmetros por termos limites na sala de aula por causa dos processos de avaliação, mas também não submeter-se completamente a esse processo”. Lopes disse também que “a única forma de não se submeter é questionar, debater, ver formas diferentes de trabalhar, negar o discurso colocado, não entendê-lo como discurso único e às vezes simplesmente dizer não”.