Um estudo na Universidade de São Paulo (USP) abordou o jogo infantil tendo como base teorias psicológicas e a concepção da psicanálise sobre o tema. Segundo Maria da Glória Feitosa Freitas, autora do trabalho, como dissertação de mestrado, questionou-se os determinismos psico(bio)lógicos contidos em algumas teorias sobre o tema, que “patrocinam” certas posições e práticas dos adultos diante das crianças contemporâneas.
“Procuramos explicitar os determinismos psico(bio)lógicos embutidos nas teorias psicológicas, através do conhecimento histórico do que representou transformar um saber (o saber psicológico) em moderna ciência (a Psicologia, a partir de Wundt)”, explica a autora.
Percorrendo as idéias de Karl Groos e Stanley Hall, dois estudiosos da Psicologia do Jogo, e de outras publicações sobre o jogo infantil, realizou-se a pesquisa de campo sobre o brincar de quatro gerações sucessivas de Guriú (situado no litoral oeste do Ceará). Segundo Freitas, avançou-se na proposição de que o jogo infantil de Guriú vai além do pré-exercício de funções (Groos) ou herança instintiva dos antepassados (Hall).
“As crianças de hoje e de ontem, habitantes desta localidade litorânea, nos indicaram que o brincar responde a algo que realiza um desejo que percorre a infância inteira: o desejo de ser adulto (Freud) e de compreender o desejo que anima os seus adultos significativos”, explica a pesquisadora, dizendo que escreveu o trabalho com a intenção de refletir sobre as realizações, os tropeços e as impossibilidades de quem pensa o brincar infantil.
O primeiro capítulo da dissertação trata das filiações teóricas, dos predeterminismos que envolvem a prática do educador e de como sua trajetória é vinculada aos determinismos psicológicos contemporâneos. A intenção do trabalho, diz a pesquisadora, é debater com os que se lançam incansavelmente na busca de novos métodos “naturais” de educação e, até certo ponto, inspirados nos jogos infantis.
“Sentimos a necessidade de questionar o que o brincar infantil teria a ver com a história da Psicologia e com o aprisionamento do “comportamento” humano aos padrões biologizantes nos quais mergulharam as teorias psicológicas”, ressalta Freitas.
No segundo capítulo, aborda-se os determinismos psico(bio)lógicos contidos em certas teorias psicológicas sobre o jogo infantil. Na pesquisa bibliográfica, diz a autora, encontrou-se uma Psicologia tão aliada da Biologia, para se fazer ciência, que optou-se por dar-lhe o “pseudônimo” de Psico(bio)logia, ciência que reifica as emoções, e torna a nossa existência um previsível acontecer, controlável e sem incertezas.
O terceiro capítulo dedica-se às idéias de Karl Groos e Stanley Hall e faz um certo “rastreamento” das semelhanças de suas obras com relação às publicações recentes sobre o brincar.
Como fruto de uma tentativa da pesquisa, o último capítulo estabelece um diálogo entre os saberes psicanalíticos e os depoimentos de quatro gerações de duas famílias de Guriú sobre as brincadeiras de suas infâncias. Além disso, apresentou-se as contribuições psicanalíticas sobre as brincadeiras infantis, acompanhando o surgimento históricos dos textos de Freud (1908 e 1920).
“Lembrando os dramas cantados de Guriú, produções infantis que reuniam adultos espectadores e emocionados com as encenações de suas filhas, insistimos em pensar o brincar infantil de forma distinta de Groos e Stanley Hall. Julgamos, amparados à Psicanálise, que essas meninas de ontem realizavam um desejo que as acompanhava sempre: serem adultas!”, enfatiza Freitas.
Em todos os quatro capítulos, há pequenos espaços para apresentar e comentar dados adquiridos em observações e entrevistas realizadas com os idosos, adultos e crianças de Guriú. “Observamos a importante presença da televisão no cotidiano de todas as gerações de Guriú, exceto principalmente os que são evangélicos”, lembra a pesquisadora.
Sobre as conclusões, a pesquisadora diz: “Do que podemos ver em Guriú, impõe-se uma urgência: Mesmo que os brilhos dos dramas cantados sejam vistos atualmente como portadores de menos esplendor do que as produções televisivas, é urgente recuperar a memória dos pais (pois estas marcas simbólicas aí estão). As manifestações culturais de Guriú, longe das “dancinhas” que a televisão anuncia, precisam ser revividas”.
Os adultos precisam, argumenta Freitas, semear idéias, deixar marcas simbólicas e ajudar a contornar a ordem “estabelecida”. “Ordem que insiste em prometer-nos uma felicidade que se compra com cartão de crédito, por telefone, e que nos redime das tristezas, do mal-estar e nos exime da responsabilidade para com os referentes simbólicos oferecidos por essa gente grande que nos cerca quando ainda somos crianças, e levamos boa parte do tempo a brincar”, conclui.
“Da psico(bio)logia do jogo infantil ao desejo de fazer-de-conta que é adulto – um estudo sobre o brincar infantil”, dissertação de mestrado de Maria da Glória Feitosa Freitas. Orientação: prof. dr. Leandro de Lajonquière. Área de estudo: Psicanálise e Educação. Defesa na Faculdade de Educação da USP, em dezembro de 1999.