Com os ataques terroristas nos Estados Unidos e os desdobramentos estampados diariamente na imprensa mundial, muitas escolas procuraram abordar o tema em sala de aula. Alguns professores, mais inseguros ou cautelosos, aguardam um momento mais adequado para trabalhar o assunto. Conversamos com Demétrio Magnoli, doutor em Geografia Humana pela USP (Universidade de São Paulo), e pedimos uma orientação.
Graduado em Ciências Sociais e Jornalismo na USP, Magnoli considera fundamental dissolver noções de bem e mal quando o tema for desenvolvido. Nesta entrevista, o diretor editorial do jornal Mundo – Geografia e Política Internacional ressalta o importante papel da escola na leitura dos acontecimentos apresentados pela mídia.
Os ataques terroristas nos Estados Unidos estão sendo tema de aula, tanto no ensino infantil quanto no ensino médio. Tem alguma preocupação ou orientação aos professores para tratarem do assunto?
Demétrio Magnoli – Acho que a orientação principal é procurar criticar a visão simplista e preconceituosa de que o islã é igual ao terrorismo ou de que exista um conflito entre o ocidente e o islã.
Que tipo de abordagem o professor poderia fazer para dar uma aula sobre o Oriente Médio e o terrorismo nos EUA?
Demétrio Magnoli – Todas as questões relevantes de Oriente Médio estão relacionadas ao processo político que se abriu com os atentados terroristas nos EUA. Por exemplo, os atentados têm uma repercussão direta no conflito da Palestina. Segundo exemplo, os atentados nos EUA repercutem diretamente no futuro de uma parte do Oriente Médio, cujo centro é o Afeganistão, e que envolve uma região que já não é o Oriente Médio, que é a Ásia Central, ex-Soviética, de um lado, ao norte, o Irã, a oeste, e o Paquistão, que também já não é o Oriente Médio, a leste.
Em terceiro lugar, os atentados nos EUA envolvem o problema da estabilidade das monarquias petrolíferas no Golfo Pérsico, em particular a Arábia Saudita, que formam uma estrutura geopolítica estratégica para o ocidente, principalmente para os países industrializados. Então, esses três eixos são os principais de relacionamento dos atentados com o Oriente Médio. Em resumo: a questão palestina, a questão do Afeganistão e seus arredores e a questão da estabilidade das monarquias petrolíferas do Golfo Pérsico.
Considera pertinente pensar numa estratégia para evitar um maniqueísmo de que a vítima está do lado do bem? Ou seja, o bem seria os EUA. Porque isso pode acontecer na sala de aula…
Demétrio Magnoli – É fundamental evitar esse maniqueísmo. E é fundamental, principalmente, dissolver as noções de bem e mal que não são noções históricas nem de política internacional.
Teria alguma estratégia para o professor utilizar em sala de aula, a fim de evitar esse equívoco?
Demétrio Magnoli – Não existe uma estratégia. Existe um bom curso. Um bom curso terá mostrado, por exemplo, que o significado de jihad não é necessariamente guerra. A jihad é um esforço de conversão religiosa. Às vezes, é uma luta interior, do indivíduo, para se tornar uma pessoa melhor. Um bom curso sobre o islã terá mostrado que o islamismo não é uma religião de fanáticos, embora existam fanáticos islâmicos como existiram, ao longo da história, fanáticos cristãos em quantidade. Então, um bom curso de história já terá começado esse processo.
Um bom curso de geografia vai mostrar, por sua vez, como os conflitos no interior do islã, atualmente, envolvem diferentes concepções políticas de organização do Estado. A idéia da república islâmica, do Estado ou da monarquia islâmica é uma vertente política no mundo islâmico, mas apenas isso. Há vastas correntes políticas que são contra estados islâmicos. Então, um bom curso de geografia vai mostrar a diversidade no interior do islã, tanto do ponto de vista religioso como do ponto de vista político.
Teria alguma crítica sobre a cobertura feita pela imprensa nas últimas semanas a respeitos dos ataques?
Demétrio Magnoli – É péssima a cobertura da imprensa. A CNN se revelou uma emissora estatal americana, tocando o hino nacional e tambores de guerra. A imprensa brasileira tem uma extrema dificuldade para fugir do chavão e, principalmente, do chavão do ocidente contra o islã, que é simplificador, fácil e que revela às vezes má fé, mas muitas vezes revela ignorância dos jornalistas. Então, a cobertura, com raras exceções, que existem também, não busca subsídios históricos, não busca uma análise da diversidade geopolítica e se move, em grande parte, em torno de chavões destituídos de conteúdo. Por isso é importante para as escolas interpretarem a cobertura da imprensa e fazerem a crítica dessa cobertura.
O professor, geralmente, utiliza o jornal e a revista dentro da sala de aula como instrumento pedagógico…
Demétrio Magnoli – Antes, só um comentário geral. Isso às vezes é bom e às vezes é ruim. Em geral, eu sou a favor disso. É preciso relacionar os cursos com os fatos de atualidade etc. Mas utilizar uma revista de baixíssimo nível, como a Veja, como material pedagógico é péssimo, porque é um lixo. Então, não é uma boa idéia.
Mas mesmo o lixo não deveria ser utilizado como instrumento pedagógico…
Demétrio Magnoli – Apenas no caso de outros instrumentos de qualidade muito melhor já terem sido utilizados, criando uma base para a crítica do lixo. Não adianta falar que vai utilizar o lixo para criticar se o que é bom e melhor não foi utilizado. Proponho se utilizar materiais paradidáticos, livros paradidáticos, matérias selecionadas da imprensa, de nível melhor, onde o professor faz a seleção, um jornal como o que eu faço, Mundo – Geografia e Política Internacional, e, só depois dos alunos terem condições intelectuais para fazerem a crítica, é que se pode utilizar a bobagem. Se é que vai sobrar tempo. Mas só como alvo de crítica.
É um bom exercício para uma classe bem formada: pegar uma matéria para revelar onde estão os preconceitos e chavões. Mas não é o ponto de partida. Porque, no ponto de partida, os alunos não têm meios para fazer essa crítica. O ponto de partida é dar aulas decentes de história e geografia. Tendo formado essa base de conceitos, o professor pode e deve fazer a crítica de como o preconceito e a ignorância aparece na imprensa. Aliás, os exemplos se multiplicaram quase ao infinito.