Na primeira parte dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) sobre “Pluralidade cultural”, recomenda-se o ensino de várias culturas a fim de oferecer ao aluno o conhecimento de um Brasil complexo, multifacetado e até paradoxal. Partindo dessa orientação, Cláudia Malbergier Caon desenvolveu sua tese de doutorado na FEUSP (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo) e chegou à conclusão de que a proposta do governo pode, na teoria, enfraquecer os grupos culturais.
“Cheguei à conclusão de que pode enfraquecer porque mostra muitas culturas ao mesmo tempo e a criança fica sem referencial”, explica Caon. Ela entende que a referência de uma única cultura deixa de existir na visão dos PCNs. Em outras palavras, se a criança receber informações sobre várias culturas, tudo ficaria relativizado. “Não teria uma cultura que é dela”, alerta.
Como os PCNs são novos, sem uma implementação completa, o estudo de Caon foi teórico e baseado nos textos oficiais publicados. Mesmo assim, longe de uma pesquisa empírica, suas conclusões consideram muito prejudicial as orientações propostas para a formação de uma criança como membro de um grupo.
Que tipo de professor vai poder ensinar várias culturas de forma adequada a cada uma? Como falar de uma cultura que não é sua? São algumas perguntas que nos remetem à formação do professor e indicam a importância do tema e seu grau de complexidade. Cláudia Caon considera esse tipo de ensino muito delicado.
Mas a tese da pesquisadora, que foi aprovada com distinção, não trata da implementação dos PCNs nem da formação de professores. Caon investigou os fundamentos dos parâmetros com fortes referenciais do multiculturalismo americano de lutas e reivindicações.
Para tanto, estruturou seu trabalho em sete capítulos. No primeiro, faz uma introdução. No segundo, discute a formação da identidade com vários autores como Charles Taylor, Kenneth Gergen, Antony Gidens, dentre outros. O objetivo foi verificar como eles tratam a identidade no contexto pós-moderno, em que a comunicação entre as pessoas e os grupos é muito acentuada. “Todos apontam para uma certa fragmentação da identidade; não seriam várias identidades, mas uma mais fragmentada”, explica Caon. Como o estudo foi realizado sob o ponto de vista de um grupo, de cultura judaica, os autores contribuíram para refletir sobre os conflitos ente o grupo e o global, característica muito presente no pós-modernismo.
No terceiro capítulo, sobre convívio e conflito étnico, abordou-se a questão do preconceito, que pode ser evitado, segundo os PCNs, se houver um ensino multicultural. “Mas eles não colocam comprovação nenhuma disso”, ressalta Caon, que analisou os texto dos PCNs com autores que pensam de forma diferente. Segundo Caon, nas relações individuais, o conflito pode até diminuir com o conhecimento da cultura diferente, mas quando se trata de grupos o efeito pode até ser contrário. “Se (o grupo) tem contato com muitos grupos diferentes, o conflito pode aumentar porque os grupos se sentem ameaçados. Há um medo de perder as particularidades culturais; e começam a ter um comportamento defensivo e a evitar o contato”, explica a pesquisadora. Para ela, esse aspecto contradiz a idéia dos PCNs se considerarmos a relação entre grupos, mas na relação individual isso não chega a acontecer.
O quarto capítulo, “Educação fundamental: momento de inserção ou de relativização”, trata da criança nos primeiros anos de escolarização, entendido como momento para inserção no grupo social da criança. Caon explica que é um período de socialização. “Deve realmente passar a fazer parte como membro de uma sociedade, para mais tarde ter um afastamento e uma posição mais crítica em relação a essa sociedade”. A idéia é mostrar que a criança não deve ser inserida em várias culturas ao mesmo tempo. “Se isso ocorre, na verdade, não é inserida em nenhuma. A criança fica sem referencial.” O filósofo norte-americano Richard Rorty serviu de base para investigar esta questão.
A tese de Caon se concentrou no primeiro ciclo do ensino fundamental porque, quando iniciou seu trabalho, o governo só havia publicado os PCNs desse período. Apesar disso, no segundo ciclo do fundamental, a construção de um referencial também é importante, segundo a pesquisadora, que também se fundamenta em Rorty para esta questão.
Sobre a “Força e a verdade dos símbolos culturais”, no quinto capítulo, Cláudia Caon fala da força das culturas, que se enfraquecem quando apresentadas uma do lado da outra para que uma seja escolhida. Seu estudo mostra que a cultura é um elemento forte que constitui o ser humano; e a educação relativista elimina essa força.
Uma alternativa a esses problemas levantados pelo estudo pode ser conferido no sexto capítulo, cujo título ficou “O conhecimento da própria cultura como fator de fortalecimento de laços”. A proposta consiste num aprofundamento dos valores da própria cultura. “Para favorecer o respeito por outros grupos, em vez de ir pelo ensino multicultural, é melhor ir pelo ensino ético, com os princípios de cada grupo”, defende.
Para sustentar essa proposta, Caon escolheu um grupo específico formado pela cultura judaica, que também foi abordado na sua dissertação de mestrado. Em função da escolha, a pesquisadora procurou algumas histórias exemplares sobre o relacionamento entre judeus e não-judeus. “Faço um trabalho de busca de princípios e histórias que mostram a obrigação de se respeitar todos os outros grupos. Então, não quer dizer que por estar mais inserido num grupo vai ser preconceituoso com relação aos outros”, justifica. O sétimo capítulo trata dessas questões, ressaltando valores como igualdade e tolerância.
“Como o ensino ético é muito baseado nas narrativas e nas histórias, analiso também o papel da narrativa na educação”, explica. Caon faz uma interpretação dessas histórias e um estudo sobre a força da narrativa na educação, além de examinar alguns aspectos dos PCNs de ética.
Nas considerações finais, Caon explica que o exercício feito com a cultura judaica poderia ser realizado com outras culturas, para encontrar histórias e princípios que favoreça o respeito e a igualdade com relação ao outro. “Ao invés de adotar essa postura dos PCNs, deve-se adotar o ensino da ética para atingir os mesmos objetivos”, conclui.
“Escola étnica e ensino multicultural: uma alternativa aos Parâmetros Curriculares Nacionais”, tese de doutorado de Cláudia Malbergier Caon. Orientação do prof. dr. Marcos Barbosa de Oliveira. Área de estudo: Filosofia da Educação. Defesa na Faculdade de Educação da USP, em 27 de outubro de 2000.