Os rumos da educação nas mãos dos educadores

Muitas escolas particulares estão fazendo publicidade com o fato de possuírem todo tipo de especialistas na prevenção e cura dos ditos problemas de aprendizagem. Esse é apenas um exemplo do processo de psicologização que acontece hoje na educação, um dos temas tratados no livro Infância e Ilusão (Psico)Pedagógica – escritos de psicanálise e educação, de Leandro de Lajonquière, psicanalista, doutor em educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Lajonquière realizou um estágio de pós-doutorado junto à equipe coordenada por Maud Mannoni, na École Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne, na França, seguindo de perto uma linha de trabalho que indaga a legalidade do ideário pedagógico. Também publicou, em 1993, De Piaget a Freud – para repensar as aprendizagens, pela Editora Vozes. A seguir, Lajonquière fala sobre as ilusões psicopedagógicas, do certo horror dos adultos com relação ao ato educativo e sobre o papel dos educadores para os rumos da educação no Brasil:

EducaBrasil – De que forma a afirmação “a educação é impossível” articula-se com suas investigações?
Leandro de Lajonquière – Freud disse que existem três profissões impossíveis, referindo-se à psicanálise, a educação e a política. Esta afirmação freudiana é bastante chamativa. Como ele diz que a própria psicanálise que ele inventou é impossível? Essa frase é conhecida porque hoje existe uma certa publicidade do pensamento psicanalítico no campo educativo. O que me espantou foi constatar nos últimos anos que muitas pessoas repetem a afirmação de que a educação é impossível sem parar pensar o que ela realmente significa. Isto é, o que Freud estava pensando quando falou da impossibilidade da educação, da política e da psicanálise.

A minha hipótese é a seguinte: se essa frase é tomada ao pé da letra e as pessoas não se surpreendem é porque as pessoas estão tomadas por um desejo muito forte de que de fato a educação seja impossível; em todos os sentidos. Mas na verdade é impossível em um outro sentido, que é o sentido freudiano. Então quando digo que existe um forte desejo inconsciente de que a educação seja impossível, significa que se espera uma confirmação de que não adianta educar.

Educar é de certa forma insuflar uma promessa que de fato alguma coisa de diferente pode acontecer. Vamos dizer que educar é o contrário dessa famosa frase que se repete todos os dias: de que adianta tentar se é assim mesmo? É inerente ao ato educativo o fato de motorizar certa promessa de um futuro diferente; de uma aposta.

EducaBrasil – Existe hoje uma passividade?
Lajonquière – Me parece que hoje em dia se peca por uma certa renúncia ao ato de educar. Se renuncia a sustentar essa aposta educativa, de que de fato o amanhã pode ser diferente do hoje. Então as pessoas têm uma certa tendência a tomar esta frase ao pé da letra como se fosse uma espécie de confirmação de seu desejo de que fato é assim mesmo. Há um mal-entendido a respeito dessa frase.

EducaBrasil – Então essa frase está fora de contexto no seu uso?
Lajonquière – Sim. Freud diz que essas três profissões são impossíveis porque são tipicamente humanas e não técnicas. Diz que em cada ato psicanalítico, em cada ato educativo e em cada ato político se reinventa toda a política, toda a psicanálise e toda a educação. Mas essa possibilidade de reinventar tem a ver justamente com que o sujeito sustente a impossibilidade do ato. Essa impossibilidade é a de saber de antemão o que vai acontecer. Parece então que hoje as pessoas não querem pagar para ver o que vai acontecer depois, por isso renunciam ao ato, temendo educar. Eu acredito que hoje os adultos têm um certo horror ao ato educativo. Por isso os adultos querem comprar um manual de como ser um bom pai, de como ser um bom pedagogo. Eles não podem estar a sós com a criança, precisam estar acompanhando o manual para interpretar o que ela está fazendo. Os adultos hoje tem medo das crianças.

EducaBrasil – O senhor diz no livro que a “psicologização” do cotidiano escolar também está presente nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais). De que forma?
Lajonquière – Eu não digo que não existam parâmetros ou coordenadas. Em todos os países existem coordenadas e a educação é sempre mais ou menos planejada. A minha discordância é justamente na pretensão de planejar uma educação a partir de premissas psicológicas. É o problema que eu chamo de ilusão psicopedagógica. Então, se entre o adulto e a criança não há relação, se pensa que para saber sobre essa falta de relação eu tenho que ler um manual de psicologia. Se eu leio esse manual, me informo e me iludo, pois justamente nunca seremos um bom pai.

EducaBrasil – Então não existe um pai ideal?
Lajonquière – Não, e se passa a ilusão de que existiria. Os manuais de psicologia da educação, apesar da boa vontade de quem escreve, criam a ilusão de que você se torna bom educador. Isso é pensar que a nossa vida pode ser explicada ou gerida por conhecimentos psicológicos. Ou seja, é reduzir a existência a um saber técnico, e se eu conheço a técnica da psicologia faço acontecer a educação de uma criança. A minha critica é apenas nesse ponto. Parece que os colegas, sem querer, endossaram abertamente uma ilusão psicopedagógica, dos saberes psicológicos no campo da educação. Suspeito que não estou enganado e a minha investigação tenta mostrar que o problema da educação não é técnico, não falta uma teoria da psicologia. O que não quer dizer que a psicologia não seja ciência. É lógico que há teorias psicológicas muito interessantes, mas eu estou apenas colocando o dedo na ferida: na passagem da psicologia para o campo da educação.

EducaBrasil – E os PCNs se articulam com esse pensamento?
Lajonquière – Me parece que eles endossam essa ilusão. Por exemplo, aparece repetidamente a idéia de que nós temos que adequar as capacidades psicológicas da criança. Então, se supõe que a educação não funcionava porque se embasava em teorias psicológicas ultrapassadas, e agora, com uma nova teoria psicológica, a coisa iria funcionar… Isso é uma besteira. Se seu pai foi na escola e seu avô também, como eles se educaram?

EducaBrasil – Essa é uma pergunta que o senhor deixa…
Lajonquière – Me parece que o assunto é mais complexo que isso. Nós não podemos dizer que antes a educação não funcionou. Eu tenho dúvidas e volto a abordar a história dos países jovens como o Brasil. Ele está aí para mostrar que muitos dos imigrantes do início do século eram pobres, mudaram de país e vieram sozinhos; eram crianças e jovens, trabalhavam de qualquer coisa, e entre tantos problemas eles se alfabetizaram. Na Argentina, por exemplo, o sistema educativo praticamente se universalizou de uma forma crescente nos últimos quinze anos do século passado e, nas primeiras décadas desse século, as regiões urbanas da argentina apresentam um analfabetismo de 3%. Todos os sistemas educativos europeus mostram que se pode educar. Na Suíça e na Suécia não há analfabetismo. Qual a explicação? Eles inventaram a psicologia e nós ainda não? É só conhecer esses países para vermos que as coisas são um pouco diferentes.

EducaBrasil – E como a psicanálise poderia contribuir?
Lajonquière – Justamente, a psicanálise não deve dizer o que fazer. Ninguém pode dizer o que fazer. Eu estou criticando a psicologia porque ela acha que tem a dizer sobre o que fazer. A minha hipótese é que ninguém, nem a psicanálise pode dizer o que fazer. Entretanto, a psicanálise pode dizer o que não
deve ser feito. Então, o que vai ser feito depende do que as pessoas queiram fazer. Eu recoloco os rumos da educação nas mãos dos educadores. A questão é tirar os rumos da educação das mãos dos especialistas, em particular dos psicólogos, e colocar nas mãos dos educadores, aliás como antes estavam.

EducaBrasil – Com relação à ilusão, a psicopedagogia tentaria encontrar no real uma lógica natural. De que forma isso seria uma ilusão?
Lajonquière – Eu estou convicto de que algumas crianças às vezes precisam ter um tratamento especializado, de clínica psicopedagógica. Mas isso não justifica que toda a educação venha a ser psicopedagogizada. Não quero que venham dizer que eu estou falando mal da psicopedagogia. São coisas diferentes. O que eu estou chamando de ilusão psicopedagógica é a ilusão de que há uma junção entre a dimensão psicológica e a dimensão pedagógica. Ilusão no sentido de que os adultos desejam que o que eles fazem com as crianças seja de fato adequado. Mas acontece que aquilo que seu pai e sua mãe fizeram para você foi inadequado. E o que fizeram comigo também, e com todo mundo. Porque a educação necessariamente é inadequada, porque não há relação entre os adultos e as crianças; vivem em mundos diferentes. Você imagina quando tem um filho que vai fazer uma coisa diferente do que fizeram contigo. Isso significa que a educação é impossível. Mas não significa que esse curto-circuito não possa ser eliminado. A psicanálise chama para a impossibilidade de eliminar esse curto-circuito, o que Freud vai chamar de o mal-estar na cultura. Ou seja, o homem está sempre insatisfeito, o que não é ruim, é bom porque significa que o homem está alimentado por um desejo. E na medida que ele está alimentado por um desejo, se lança a projetos impossíveis, tenta a justiça, se lança à criação…

EducaBrasil – E como isso se articula com o fracasso escolar?
Lajonquière – Num momento determinado (do livro) eu digo que o fracasso escolar não existe. Não quero dizer que as crianças não vão mal nas escolas, mas peço cuidado porque hoje em dia se fala em distúrbios e fracassos que se transformaram em temas da mídia. Todo mundo fala em fracasso escolar como se fosse algo que não sabemos do que se trata. Hoje se pensa que a criança vai mal na escola ou porque ela é imatura ou porque o projeto pedagógico da escola não era adequado para ela. Eu estou criticando isso, pois seria acreditar que haveria uma adequação entre o projeto, isto é, entre a intervenção do adulto e a criança. O problema é que a escola não funciona. Não é que o fracasso escolar é do aluno, é a escola que fracassa. A escola fracassa porque essas ilusões psicologizantes tomam conta do cotidiano escolar e provocam uma diminuição do simbólico das práticas escolares. Por isso, as crianças sobem nas cabeças dos professores. Precisa haver formação e salário. Ou o país dá prestigio, salário e formação ou estamos enchendo lingüiça. O problema é político, não no sentido político-partidário. Ou a sociedade assume a educação como valor e reconhece os professores e as instituições educativas, ou não tem jeito.

EducaBrasil – Então a legitimidade do ato educativo seria dado pela sociedade?
Lajonquière – Sim, nada cai do céu.

EducaBrasil – O senhor teria algumas propostas diante disso?
Lajonquière – Sim. Aumentar 20 vezes o salário do professor. Se me disserem que não há dinheiro, eu digo para tirar o dinheiro de todos os técnicos e especialistas que o Ministério tem para colocar no bolso dos professores. E não sou eu que digo, é a história dos países que acabaram com o analfabetismo. Aqui, se você sai na rua e diz que é professor, as pessoas tiram sarro da sua cara. Mas, se você pára na França e diz que é professor, a conversa é outra.

COMO CITAR ESTE CONTEÚDO:
MENEZES, E. T. Os rumos da educação nas mãos dos educadores. EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 1999. Disponível em <https://educabrasil.com.br/os-rumos-da-educacao-nas-maos-dos-educadores/>. Acesso em 27 jul. 2024.

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